O futuro da Amazônia; o caos fundiário

Amazônia, felizmente, entrou na agenda brasileira. Até aqui, para a maioria dos brasileiros, era apenas uma área longínqua e exótica, objeto da atenção de ecologistas, de empreendedores sonhadores, de aventureiros e de criminosos de várias espécies. À medida que a Amazônia desperta o interesse de empresários sérios, que julgam que a conservação ou a regeneração florestal e as inúmeras oportunidades derivadas da bioeconomia representam oportunidades de investimento, mais fica claro que há muitos obstáculos a enfrentar.

O imperativo da redução do desmatamento ilegal, o combate ao crime, a valorização dos indígenas e das populações ribeirinhas, e a satisfação das necessidades básicas dos amazônidas em educação, saúde, mobilidade e comunicação passam a ser objeto de estudos e propostas de políticas públicas. O atendimento destas necessidades tem um valor que vai muito além de qualquer negócio novo que venha a ser criado.

Mas para que investimentos comprometidos cheguem ao local, há uma precondição, hoje longe de ser atendida. Trata-se da regularização territorial, da apropriada titulação que leve, ao final, à disponibilidade de terras que possam receber registros formais de propriedade.

A chamada Amazônia Legal, uma área de 502 milhões de hectares, engloba a totalidade dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do estado do Maranhão. Corresponde a 59% do território nacional, incluindo o bioma amazônia e partes dos biomas cerrado e pantanal. De sua população de 28 milhões de pessoas, 76% vivem em áreas urbanas.

De acordo com recente relatório do Instituto Escolhas, desta área, 118 milhões de hectares são terras públicas não destinadas, incluindo aquelas que ainda não foram arrecadadas pelo Estado. Isto equivale a cerca de um quarto da Amazônia Legal, ou a duas vezes a área da França. Deste total, 57 milhões de hectares são os chamados “vazios fundiários”, ou seja áreas públicas ainda não discriminadas pelo Estado e não georreferenciadas. Os restantes 61 milhões de hectares são glebas públicas que fazem parte do patrimônio da União, mas que ainda não foram destinadas. O Estado brasileiro se omite, pois poderia destinar estas áreas à proteção ambiental ou a quem as usasse produtiva e legalmente. Uma forma de protegê-las seria destiná-las a novas unidades de conservação, ou incorporá-las a unidades já existentes.

Os órgãos responsáveis pelo registro de imóveis no arranjo legal brasileiro são os Cartórios de Registro de Imóveis. Os registros por eles emitidos são os únicos documentos que servem como prova de propriedade da terra. Já em 2021 a Transparência Internacional apontava que a precariedade destes cartórios, e o não georreferenciamento, indicavam a fragilidade do sistema brasileiro de governança de terras.

Esta questão tem sido objeto de atenção do novo governo. Em 5 de setembro deste ano, o governo federal publicou o Decreto 11.668 que dispõe sobre a regularização fundiária em terras da União. Para medir a complexidade do trabalho, basta mencionar que a Câmara Técnica criada tem representantes de seis ministérios e cinco outros órgãos federais, incluídos o Incra, o Serviço de Patrimônio da União, o Serviço Florestal Brasileiro, a Funai e o Instituto Chico Mendes. O decreto estabelece que em 90 dias o Comitê deverá apresentar um plano de ação para destinação das terras públicas em áreas críticas e prioritárias da Amazônia Legal.

A ida do Cadastro Ambiental Rural para o Ministério da Gestão e Inovação parece indicar que o governo está atento para a importância de uma gestão qualificada de dados estratégicos. A construção de infraestruturas públicas digitais deve fazer parte de um projeto nacional de desenvolvimento.

Sem o saneamento e a modernização dos Cartórios de Registro de Imóveis e sua digitalização, e o georreferenciamento dos processos de titulação, combinados com o acesso aberto de todos os dados destes cartórios, não existirá segurança jurídica para que empreendedores consequentes invistam na Amazônia. E sem estes, o desenvolvimento deste espaço, a regeneração florestal, sua exploração legal, através dos recursos da bioeconomia, não ocorrerá.

E sem isto, não haverá futuro para a Amazônia.

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Informações da Folha de São Paulo

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